A lembrança de Serra Pelada, o maior garimpo a céu aberto da história do Brasil, continua vívida na memória coletiva do país. Nos anos 1980, milhares de homens deslocaram-se para o interior do Pará, cavando com as próprias mãos uma imensa cratera em busca do ouro. Hoje, a Amazônia enfrenta uma nova e crescente corrida pelo metal precioso, o que levanta uma pergunta inevitável: estamos presenciando o surgimento de uma nova Serra Pelada?
A comparação entre o cenário atual e o histórico garimpo do século passado revela diferenças gritantes, mas também algumas semelhanças que preocupam autoridades e ambientalistas. Se antes o esforço era movido por força física e ferramentas rudimentares, agora a corrida pelo ouro é alimentada por máquinas pesadas, logística sofisticada e uma rede de operações criminosas que desafia a fiscalização. As consequências, por sua vez, continuam sendo devastadoras para o meio ambiente e para as populações locais.
Serra Pelada: um marco de força humana e ambição
O auge de Serra Pelada nos anos 80 marcou uma época em que o garimpo era feito de maneira quase artesanal. Imagens eternizadas por fotógrafos como Sebastião Salgado mostravam uma verdadeira massa de homens subindo e descendo escadas improvisadas, carregando sacos pesados de terra e minério. A cena, muitas vezes descrita como um “formigueiro humano”, era um retrato brutal de trabalho extenuante e ambição desmedida.
O cenário era caótico, porém concentrado: uma única cratera que crescia dia após dia. As condições de trabalho eram precárias e a segurança inexistente, mas a esperança de encontrar ouro fazia com que cada homem ali persistisse. A história de Serra Pelada se tornou um símbolo de superação e sofrimento, refletindo um Brasil que, à época, ainda buscava se firmar economicamente.
A nova febre do ouro: mecanização e impacto ambiental em larga escala
Ao contrário do passado, a nova corrida do ouro na Amazônia não é movida apenas por indivíduos com pás e enxadas. Hoje, a exploração é marcada por tecnologia avançada e por uma logística impressionante. O garimpo ilegal agora utiliza dragas, escavadeiras, tratores e balsas para extrair o ouro de rios e solos, atingindo áreas antes inacessíveis. O impacto ambiental, por sua vez, se tornou ainda mais severo e disseminado.
As operações clandestinas contam com pistas de pouso improvisadas, comunicação via satélite e um sistema de abastecimento capaz de manter centenas de homens em áreas remotas da floresta por meses. Esse avanço logístico ampliou a escala da devastação, transformando pontos isolados da Amazônia em alvos fáceis para exploração predatória.
A consequência direta desse novo modelo de garimpo é uma degradação ambiental acelerada. Leitos de rios são revolvidos, ecossistemas são destruídos e comunidades indígenas são cada vez mais ameaçadas. A situação é tão grave que o governo federal tem intensificado operações de combate ao garimpo ilegal, como forma de tentar conter os danos.
Operações de repressão revelam a dimensão da atividade ilegal
Para entender a verdadeira dimensão da nova corrida pelo ouro, basta olhar para os números recentes da Operação Catrimani II, realizada entre abril de 2024 e abril de 2025 na Terra Indígena Yanomami. Somente nessa ação, as forças de segurança conseguiram causar um prejuízo superior a R$ 345 milhões aos grupos criminosos que atuam na região.
A operação resultou na apreensão de 33 aeronaves, 123 balsas e dragas, além da destruição de 508 acampamentos e 53 pistas de pouso clandestinas. Foram também confiscados mais de 186 mil litros de combustível, 34 quilos de ouro e 158 toneladas de cassiterita. Esses números mostram que o garimpo ilegal na Amazônia opera hoje em uma escala industrial, distante da figura do garimpeiro solitário que marcou a história de Serra Pelada.
Diferenças geográficas e organizacionais: de uma cratera única a milhares de focos de exploração
Um dos aspectos mais marcantes dessa nova fase da exploração aurífera é a sua distribuição geográfica. Enquanto Serra Pelada concentrava milhares de homens em um único local, a nova realidade amazônica é difusa e pulverizada. Não há uma “nova Serra Pelada” visível do espaço, mas sim milhares de pequenos focos de garimpo espalhados por toda a floresta.
Somente na Terra Yanomami, entre julho e setembro de 2024, foram registrados mais de 50 hectares de novas áreas abertas para o garimpo. Essa expansão desordenada se espalha como uma espécie de “câncer ambiental”, afetando rios, florestas e populações locais de maneira silenciosa, porém devastadora.
Outro fator que diferencia o garimpo atual do cenário dos anos 80 é o envolvimento direto de facções criminosas e organizações com estrutura empresarial. O garimpo ilegal virou uma espécie de braço financeiro para o crime organizado, servindo como uma poderosa ferramenta de lavagem de dinheiro e de expansão territorial desses grupos.
Enquanto os trabalhadores na linha de frente continuam vivendo em condições precárias, a maior parte do lucro fica concentrada nas mãos de quem financia as operações. A lógica, agora, é empresarial: maximizar extração, minimizar custos e, se possível, burlar a fiscalização.
A comparação entre o passado e o presente deixa claro que, apesar de algumas semelhanças no objetivo final – a busca pelo ouro –, as diferenças estruturais e o impacto ambiental tornaram o problema ainda mais complexo e desafiador de resolver.